"Sou um objeto querido por Deus. E isso me faz nascerem flores no peito. Ele me criou igual ao que escrevi agora: "sou um objeto querido por Deus" e ele gostou de me ter criado como eu gostei de ter criado a frase. E quanto mais espírito tiver o objeto humano mais Deus se satisfaz.
Lírios brancos encostados à nudez do peito. Lírios que eu ofereço e ao que está doendo em você. Pois nós somos seres carentes. Mesmo porque estas coisas - se não forem dadas - fenecem. Por exemplo - junto ao calor de meu corpo as pétalas dos lírios se crestariam. Chamo a brisa leve para a minha morte futura. Terei de morrer senão minhas pétalas se crestariam. É por isso que me dou a morte todos os dias. Morro e renasço.
Inclusive eu já morri a morte dos outros. Mas agora morro de embriaguez de vida. E bendigo o calor do corpo vivo que murcha lírios brancos.
O querer, não mais movido pela esperança, aquieta-se e nada anseia.
[...]
Eu serei a impalpável substância que nem lembrança de ano anterior substância tem."
Fortemente sedada, ela (Clarice) ainda ditava palavras a Olga na manhã de 9 de dezembro de 1977.
"Súbita falta de ar. Muito antes da metamorfose e meu mal-estar, eu já havia notado num quadro pintado em minha casa um começo.
Eu, eu, se não me falha a memória, morrerei.
É que você não sabe o quanto pesa uma pessoa que não tem força. Me dê sua mão, porque preciso apertá-la para que nada doa tanto."
Um dia antes de sua morte, registrou Olga Borelli, Clarice Lispector sofreu uma intensa hemorragia: "Ficou muito branca e esvaída em sangue. Desesperada, levantou-se da cama e caminhou em direção a porta, querendo sair do quarto. Nisso, a enfermeira impediu que ela saísse. Clarice olhou com raiva para a enfermeira e, transtornada, disse:"
"Você matou meu personagem!"
(Clarice Lispector, nascida Chaya (que em hebraico significa "vida")Lispector - 1920-1977)